terça-feira, 29 de novembro de 2011

Carta do Zé agricultor

A carta a seguir - tão somente adaptada por Barbosa Melo - foi escrita por Luciano Pizzatto que é engenheiro florestal, especialista em direito sócio ambiental e empresário, diretor de Parque Nacionais e Reservas do IBDF-IBAMA 88-89, detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia. 

    Prezado Luis, quanto tempo. 
 Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque
o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato
sujo? Tinha professor ecolega que nunca entenderam que eu tinha de andar
a pé mais de meia légua para pegaro caminhão por isso o sapato sujava. 
    Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era
eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da
noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de
meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das
vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra, né Luis? 
    Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem
vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar
puro... Só que acho que estouestragando muito a tua vida e a de teus
amigos aí da cidade. Tô vendo todo mundo falar que nós da agricultura
familiar estamos destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive
que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos
os matutos daqui já têm luzem casa, mas eu continuo sem ter porque não
 se pode fincar os postes por dentro de uma tal de APPA que criaram 
aqui na vizinhança. 
    Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma 
maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que
fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água 
vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né Luis?

    Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né?) contratei Juca,
filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada,
salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava
aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que
nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da
Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite
das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não
podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não
sabem os dias da semana aí não param de fazer leite. Ô, bichos aí da
cidade sabem se guiar pelo calendário?
    Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o
beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como 
encumpridar uma cama, só comprando outra né Luis? O candeeiro
eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz
elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto 
do Juca. 

Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que
fazer parte do salário dele. Bom Luis, tive que pedir ao Juca pra voltar
pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo
fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada
me disseram que ele foi preso na cidade porque botou umas frutas no
bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não
apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.
Depois que o Juca saiu eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite
às 5 e meia, aí eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o 
carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco
 o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.
Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a
distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse
que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros 
de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio,
um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só 
que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda
me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras
e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que 
desta vez, por esse crime, ele não ai mandar me prender, mas me obrigou
a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade.
Ô Luis, aí quando vocês sujam o rio também pagam multa grande? 
Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com
a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo 
protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem
chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho 
como os rios ai da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem 
chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital
nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando
pra todo lado.
Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no 
mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore
então, Nossa Senhora!. Tinha uma árvore grande ao lado de casa que 
murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a
madeira antes dela cair por cima da casa.
Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no
Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim
fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e
ninguém apareceu pra fazer o tal laudo ai eu vi que o pau ia cair em cima
da casa e derrubei. Pronto!
No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do 
Promotor porque virei criminoso reincidente. 
Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.
Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a
20 mil reais por hectare e por dia. 
Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é
melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para
a cidade, ai tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada
errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.
Eu vou morar aí com vocês, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usar o dinheiro
da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio
eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e
só depois colhe pra levar pra casa. Aí é bom que vocês e só abrir a
geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de 
galinha, nem porco, nem vaca é só abri a geladeira que a comida tá lá,
prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça. 
Até mais Luis. 
Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois não 
existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio. 
(Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em
dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas
alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário
entre o meio rural e o meio urbano.)

Divulgue!

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